Crónica de Alexandre Honrado – O pior ano das nossas vidas

O pior ano das nossas vidas
Por Alexandre Honrado

 

Este não é seguramente o pior ano das nossas vidas.

Não estamos em guerra mundial; um ditador atrasado e os seus polícias não nos levam para a guerra colonial, para masmorras infectas, não somos números à porta da câmara de gás, não nos matam aos milhões com as espingardas da loucura e até  podemos dizer as maiores alarvidades e as coisas mais acertadas, que há liberdade consagrada para isso porque alguém um dia deu a sua vida para nos deixar este legado extraordinário.

Não nos metem em masmorras por pensar, dizer, escrever isto, fico contente. O tal rapaz do partido fascista que apesar de barbudo é imberbe e infantil, ainda não cresceu o suficiente para ser gente, coisa que é difícil vinda de um arruaceiro oportunista com genes de aviário.

Não navegamos em balsas improvisadas para fugir aos radicais que mataram as nossas famílias.

Não morremos de fome num lugar sem água, pão ou dignidade.

Não nos raptaram os filhos, nem os escravizaram.

Não somos violados pelo comando militar que acha que é dono do mundo e da razão…

Não fomos traficados como gado indefeso.

Não temos um Presidente que perdeu as eleições e a vergonha.

Não temos um Presidente que é a vergonha do que as eleições podem perder.

Não temos baixíssima esperança de vida e a mortalidade infantil não é um desespero.

Não nos negam vacinas ou um serviço nacional de saúde, nem subsídios, alguns como último recurso de vida.

Não temos espingardas encostadas nas costelas.

Não nos impõem muito mais do que algum bom senso.

Não temos uma sociedade policial – mas uma quase impercetivelmente policiada.

Não temos de usar máscara para esconder as nossas emoções.

Não somos naturais da Guiné, ou da Guiné Bissau, nem das Ilhas Salomão, do Iémen, do Quiribati (sim, existe, na Oceânia), do Afeganistão, do Burkina Faso (aqui tão perto, em África), nem do Haiti, do Togo, de Madagáscar, da Serra Leoa, do Sudão do Sul, da Libéria, de Moçambique, do Malawi, do Níger, da Eritreia, da República Democrática do Congo, da República Centro Africana, nem do Burundi – só para falar de vinte dos países mais pobres do mundo, o que nos eleva a fasquia para muito alto.

Somos estranhos e achamos sempre que nos devem alguma coisa, lá isso. Mas ainda temos algumas coisas muito simpáticas, agradáveis, até afetivamente sofisticadas e exemplares. E temos uma certeza: este não é o pior ano das nossas vidas. Pelo menos para quem tem memória de outros anos e até de outras vidas, bem recentes algumas, vergonhosas outras.

Acenderam-se as luzes de natal aqui na rua. O por do sol foi magnífico.

Alexandre Honrado
Escritor, jornalista, guionista, dramaturgo, professor e investigador universitário, dedicando-se sobretudo ao Estudo da Ciência das Religiões e aos Estudos Culturais. Criou na segunda década do século XXI, com um grupo de sete cidadãos preocupados com a defesa dos valores humanistas, o Observatório para a Liberdade Religiosa. É assessor de direção do Observatório Internacional dos Direitos Humanos. Dirige o Núcleo de Investigação Nelson Mandela – Estudos Humanistas para a Paz, integrado na área de Ciência das Religiões da ULHT Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias em Lisboa. É investigador do CLEPUL – Centro de Estudos Lusófonos e Europeus da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do Gabinete MCCLA Mulheres, Cultura, Ciência, Letras e Artes da CIDH – Cátedra Infante D. Henrique para os Estudos Insulares Atlânticos da Globalização.

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